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"Vida longa aos dias de sol!"

sábado, 23 de abril de 2016

INÚTIL NECESSÁRIO


Quando a razão moderna libertou o homem do divino e aterrou as questões de Deus, o mundo pareceu finalmente explicado, as lacunas ainda existentes, aos poucos seriam esclarecidas pela ciência. Tudo era somente uma questão de tempo, investimento e paciência. Estava próximo o mundo inteiramente domesticado, onde a ciência o explica e o dinheiro tudo viabiliza.

Neste cenário de aparente completude, em caminho oposto às chamadas ciências duras, a filosofia, as artes e a nascente psicanálise deram um passo adiante e adicionaram complexidade e graus de liberdade à equação aparentemente resolvida.

Neste contexto, questionando e desconstruindo o aparentemente pronto, o movimento pós-moderno buscou o outro lado de dogmas e modelos pré-formatados. A arte simplesmente seguiu sua vocação de ir além, tal como criança que se diverte ao desmontar seus brinquedos curiosa em conhecer os mistérios escondidos no avesso, o artista nos expõe a algo mais.

Os exemplos foram variados: a pintura abstrata; o free jazz; as performances artísticas; o cinema nouvelle vague e outras diversas formas de expressão deram um passo adiante. Parecia que a fronteira havia avançado um pouco mais longe e o controle mostrava-se novamente limitado.

A busca ao pós-moderno é cara e laboriosa. O trabalho de desconstruir exige um cuidadoso esforço de construção prévia, que na maioria das vezes não permite atalhos. Parece estranho o músico que emite sons dissonantes ou estridentes no free jazz, ao mesmo tempo ser capaz de tocar peças de difícil execução da música convencional, ou um pintor capaz de produzir quadros tecnicamente impecáveis preferir produzir manchas ou borrões aparentemente sem sentido.

A guitarra em chamas, antes tocada à exaustão pelo virtuoso, em muito pouco se parece ao objeto destruído pela criança raivosa. A obra que se apresenta essência e minimalista, apesar de semelhante, em nada se compara ao primitivo ou infantil. O trabalho do artista de vanguarda definitivamente não é obra de criança ou preguiçosos.

A obra finalizada posiciona-se como algo sem função ou aplicação definida, é o inútil que abre espaço ao desconhecido, inesperado e instiga o expectador. Cabe a ele deixar-se seduzir e também se expor. Longe de um caminho simples ou definido, apresenta-se sem contorno, um percurso por trilhas sempre desconhecidas.

É necessário ao expectador também trabalhar, não se trata somente de receber ou contemplar de forma passiva, é preciso esforço e sustento ao sujeito que a obra instiga e desequilibra.

Perceber o estranho e expor-se ao vazio que destrói conceitos e sentidos preconcebidos, nos reapresenta à ignorância e enfraquece redes de segurança cuidadosamente elaboradas ao longo de nossa própria história. A vertigem do vazio força o movimento e a expansão, mas o combustível da angústia por vezes é intolerável e defesas dificultam ou mesmo paralisam o movimento.

Defesas enfraquecidas abrem flancos por onde antes o crescimento era bloqueado, mesmo a que se faz vitoriosa no embate com o que a questiona, é impactada. Quando instigada, ela se faz necessariamente mais forte e custosa, causando sofrimento, algumas vezes, bem superior ao que quer proteger. No limite, a dor leva o sujeito a buscar ajuda, também aí a arte cumpre sua missão.

No entanto, nem sempre é assim. Artista, obra e expectadores estão inseridos em uma sociedade, que deseja ser explicada pela razão e realizável pelo dinheiro, sem falhas ou ineficiências. Não sem motivo, agentes estão sempre atentos às necessidades que possam gerar oportunidades e ganhos.

A arte pós-moderna em suas digressões, por vezes parece hermética, abrindo espaço à sua digestão por especialistas que decodificam seus mistérios e preenchem vazios. O incompreensível e sem sentido incomoda e requer esforço do expectador, mais fácil se defender e creditá-la a algo restrito a alguns iniciados.

O capital vende o conforto e pertencimento aos que podem pagar pela digestão terceirizada e o visto de sujeito, se apresenta como atalho desviante de angústias e continente de escapamentos. Se posso pagar, por que não usar as facilidades disponíveis?

A produção artística também pode ser otimizada: parece não haver sentido em investir esforço na construção de algo singular a ser seguidamente desconstruído. A eficiência industrial permite ganhos que podem e devem ser capturados. O trabalho oportunista, mascarado pela liberdade criativa e referendado por decodificadores habilitados e diretamente interessados, cortam esforço e geram eficiência e produzem arte consumível. 

A desconstrução também interessa à lógica mercantilista, remunerar e reforçar a substituição sem limites, soa como música aos ideais de um mercado em eterna expansão. A forma mais eficaz de crescer é simplesmente descartar o obsoleto e abrir espaço à troca pelo novo.

Oferta de conforto e pertencimento, mercado em expansão permanente e geração de lucro a agentes e produtores, satisfazem com folga as leis de oferta e demanda do mercado. Gentilmente a produção artística pós-moderna é adotada por agentes econômicos, escapa de si e transfigura-se, transformando obra em produto, experiência em entretenimento.

O expectador, anestesiado, agradece e como sujeito movido pelo desejo, confunde o ideal, que preencheria seu vazio, com o produto de consumo, adiando angústias, mas o aparente conforto não se sustenta e demanda cada vez mais analgésicos. O inútil necessário cobra sua ausência.

(Marcos Paim C. Fonteles, psicanalista)
marcospaimcfonteles@gmail.com

Um comentário:

  1. Pois é, o homem é um animal desejante. Ou seja, prescinde os ditames da razão para dar lugar aos seus instintos. O homem desejante se torna presa fácil para o capital que irá moldar seus anseios de acordo com os ideais mercantilistas. É o vazio se alimentando do homem e vice versa. Instigante texto.

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